“Há dez anos realizava no Museu de Arte de São Paulo uma retrospectiva de Manabu Mabe, brasileiro oriundo do Japão, considerado um pintor de notável personalidade.
O meu primeiro encontro com ele se deu nos tempos dos primeiros avanços do Masp. Sabia de um artista que vinha da lavoura na zona de Lins, decidido a se consagrar no setor da pintura. Nas primeiras tentativas se interessou por telas de expressão paisagística, sintetizadas numa visão pessoal.
Lembro que, por simpatia, adquiri uma destas telas e, a partir daquele dia, segui atentamente seu trabalho, acompanhando sua espontânea evolução para soluções abstratas, acentuando-se em formas de prevalência colorística.
Inaugurada a selva sem fim do Abstracionismo, a figura relegada a um limbo proibido, os seguidores da tendência do Informal começaram a linguajar somente por meio de traços e manchas, combinando variedades de formas, petiscando no infinito do prisma determinador do espectro solar, não esquecendo das duas cores que não são admitidas no concerto: o preto e o branco.
Os puristas, adeptos do comunicar através da cor, arregimentaram um exército tão maciço pelo ingressar de elementos franco-atiradores ingênuos (convencidos em pular a disciplina do aprender e tornar-se produtores de arte, pontualmente levados a sério nas poluições oficiais de arte) que, nos anos 50, olhavam para os figurativos como aos que 'já eram'.
Mas estas avalanchas motivadas pelas tendências são casos comuns nas crônicas, cabendo à história, no tempo oportuno, administrar o direito de sobrevivência. No caso em exame, os sobreviventes não são numerosos desde a época em que Ciurlionis, Kandinsky, Mondrian agitaram as águas do antifigurativo aos cuidados do Cubismo. Depois será a transferência para o Abstracionismo a ganhar popularidade. E Mabe tornou-se, no Brasil, o representante mais vivo da tendência.
Sua índole tinha o destino de fazer saber por intermédio da simbologia da cor. Não precisava de intermediações entre idéia e notação: o manifestar no universo das formas da caligrafia tornou-se estímulo para manifestar-se na linguagem da cor. Mabe pôs-se à obra sem hesitações: quem o viu manejar o pincel improvisando caracteres no papel de seda estendido no chão, com segurança natural, imagina como surgem aquele lançar de cor rápido, formas planas tendentes a uma amplidão mágica, às vezes harmonizadas num único tom, outras em chocantes contrastes, outras ainda equilibradas nos preciosos arabescos das nuanças amigas.
O resultado é sempre uma sonoridade cromática: intensa, exaltada, vizinhança de cores em estreita relação de tons atingindo uma espacialidade luminosa. Fugindo do relativo, Mabe aponta um abstracionismo rigorosamente absoluto para confirmar a ausência de recursos que possam lembrar preferências figurativas.
Seu movimentar de pincéis é franca inspiração, decidida conduta da composição construtiva própria da técnica dos mestres caligráficos, sem impulsões e arrependimentos, abandono a um ideismo que, todavia, controla a seu bel-prazer.
Mabe livra-se, no captar motivos, no borboletear das girândolas ou de fogos de artifício ou no pacato correr das nuvens ou no clamor do irromper de uma tempestade, a fixação de instantes plásticos que afloram em sonoridades de cores afins a sons, linguagem da cor parecendo linguagem musical”.
Pietro Maria Bardi
Fundador do MASP/Museu de Arte de São Paulo, 1986